"Este disco não é feminista, é masculinista"

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Disse que fez Estudando o Pagode como se fosse o primeiro disco da sua carreira. Isto quer dizer o quê?

Tivemos cuidados muito diferentes dos discos anteriores. Por exemplo, tive um grupo de consultores que acompanhou a feitura do disco eram dois jovens de 15 anos na ocasião, o Pedro Luiz Gonzaga e a Fernanda Dell'Uomo, a quem eu mostrava todas as canções, mesmo quando ainda estava a planeá-las, porque não queria que ficassem canções muito difíceis e queria que esses pagoduetos pudessem ser cantados por qualquer rapaz tímido, que agora tinha pretexto para chamar uma menina para dançar.

Como escolheu estes consultores?

Simplesmente escolhi os que estavam mais perto. Eu tomo conta do jardim do prédio - ganho o salário mínimo, a minha segunda profissão é jardineiro - e todo o dia os via passar porque eles também moram lá. Então propus que eles fizessem esse acompanhamento. E Neusa, minha mulher, fez o crivo estético, como sempre faz. À medida que eu tinha uma ideia, mostrava-lhes e eles diziam "isso não vai poder tocar numa festinha nossa", "esse ritmo está muito lento", "não é assim que se fala". E quando a música era reprovada inteiramente eu fazia outra. Lembro-me que fiz o tema Quero Pensar, que é uma canção eixo no disco, umas cinco vezes durante a Semana Santa do ano passado.

Entregou assim a responsabilidade de escolher as músicas a dois jovens?

Não, a responsabilidade sempre é minha. Mas eu não queria correr o risco de fazer elucubrações e fazer coisas muito complicadas. Sempre sonhei fazer música o mais popular possível e, na verdade, toda a vida me chamaram um autor um tanto sofisticado. Desta vez acho que o disco ficou com algumas canções possíveis. É tocável.

Mas quis fazer um disco popular tendo como tema a segregação da mulher?

É, o problema da segregação da mulher é a espinha dorsal. Mas a música é bem popular. Tem atrás do meu prédio um outro muito luxuoso, de gente muito rica. E eu fiquei muito curioso porque quando eles faziam festas, tocavam somente pagode, que no Brasil é uma música das classes muito pobres, dos que não têm nem escola. Para a classe média brasileira, o pagode é o fim da picada. Eu acabei dormindo várias noites tendo o pagode como companhia, então lembrei-me que quando fiz Estudando o Samba, o meu disco de 1976, o samba também estava muito denegrido, era visto como uma música ruim, sem nada de novo. Era muito mal falado. E agora é o mesmo com o pagode. Então, pensei que poderia fazer um disco com o pagode.

Para mostrar que o pagode também pode ser bom?

Em Portugal não tem o mesmo efeito mas aqui no Brasil as pessoas tomaram um susto muito grande, inclusive no princípio todo o mundo me perguntava se era para criticar o pagode, ridicularizando a música dos pobres, ou se eu estava cedendo, tentando fazer uma música vil. Nada disso. Eu tinha apenas vontade de mostrar que qualquer género musical, mesmo o mais simples, pode ser sofisticado. A questão é que uma classe sem escola, submetida a essa cultura de massa terrivelmente aviltante, que impera no mundo todo e no Brasil é muito mais terrível, não pode fazer uma música melhor do que a que faz. Mas não tem que ser assim.

E porquê, então, o tema da mulher?

É que eu sou mulher. A minha opinião sempre foi pouco respeitada em casa; na escola eu era surrado e perseguido; depois quando a minha tendência para a música surgiu parecia mesmo que estava escolhendo uma profissão pequena. Enfim, sempre fui o lado fraco, daí essa solidariedade com a mulher e essa preocupação com justiça e com a alteridade.

Este disco homenageia a mulher?

A verdade é que é possível conquistar a mulher pelo encanto, pela afinidade ou pelo casamento, é possível comprar uma mulher, a mulher pode ir para o quarto com o homem, tirar a roupa para ele, mas não lhe dá o segredo sagrado da intimidade, porque ela está sempre com um pé atrás, sendo maltratada como sempre foi através de séculos. Até a língua portuguesa tem incrustada uma série de expressões que são agressões à condição feminina. O disco é sobre a degradação da situação da mulher mas não é um manifesto nem é um disco feminista mas sim um disco masculinista. Eu digo aos homens veja o péssimo negócio que nós estamos fazendo.

Porquê?

Já viu a desvantagem do homem, tendo essa única companheira que ele tem na face da Terra sempre desconfiada e com um pé atrás? Eu de vez em quando me admirava da grande quantidade de mulheres que conheci que não gozavam. Eu pensava, será um problema meu? Falta de habilidade minha? Um dia disseram-me que é mesmo assim, as mulheres não gozam. Então, conversei com Neusa e decidimos falar disso. Quando estava a trabalhar no disco, saiu uma pesquisa do departamento de sexologia da Universidade de São Paulo, que dizia que 60 por cento das mulheres se queixam que não são convenientemente excitadas quando vão ter relações sexuais, que por causa disso sentem dores, que geralmente o rapaz goza e larga ela a ver navios e que ela não pode se queixar porque fica com receio de ser chamada de muito experiente ou de prostituta. E as respostas dos rapazes são impressionantes, são de uma grosseria enorme. Então pergunto como é que pode sobreviver esta criatura autista, que acha que pode gozar sozinho e que não se preocupa com a mulher?

E decidiu contar a história da condição feminina numa opereta, onde as mulheres ser rebelam e lutam pelos seus direitos...

Há um enredo dramático com personagens e tudo, por isso é uma opereta. No princípio a mulher é muito mal tratada, é "o mal que Lucifer bota fé". A mulher começa então a se defender e tenta impor as suas condições ("se você vem numa boa, pode vir"). Quando o rapaz finalmente se convence que está tratando a mulher muito mal, faz uma proposta de amor, onde propositadamente eu boto muita coisa dos vícios do machismo, de tal maneira que assim que ouve o "assim será" com que termina a proposta de amor, a mulher responde "será o quê seu vagabundo" e começa a dizer que a proposta de amor está toda viciada, cheia das mesmas cruzes que ela carregou através dos tempos e canta o Vou Pensar, que também é uma coisa natural, porque sempre que se faz uma proposta de amor a uma moça ela diz que vai pensar um pouco. Este tema é baseado num conto de Geoffrey Chaucer [considerado o pai da literatura inglesa, viveu entre 1342 e 1400], A Mulher de Bath, que é sobre uma mulher sensacional, deslavadamente brincalhona, que já tinha tido cinco ou seis maridos. Uma mulher verdadeiramente pornográfica. Ele trata todos esses assuntos da moral machista com bastante picardia, charme, elegância.

Este disco não é só sobre a situação da mulher. É sobre o amor, sobre as relações...

O assunto do prazer carnal é uma espécie de leitmotiv do disco. Como curiosidade, posso dizer que é a Luciana Paes de Barros que faz os orgasmos femininos e o som do jegue [jumento], que é o animal que goza com mais escândalo, com mais libertação de energia. É o animal mais pornográfico, ou pelo menos pornofónico. E, claro, não podia fazer um disco sobre o amor sem levar em consideração os homossexuais e as lésbicas. Esse universo está em Elaeu, que é interpretada por Edson Cordeiro, que é um cantor assumidamente homossexual e que cantou esse tema com muita dignidade. Depois tem Para lá do Pará onde eu canto como se fosse uma mulher e faço também uma especulação sobre o mundo das lésbicas, aquela coisa de querer uma intimidade que não seja de jeito nenhum profanada pela estranheza que o homem significa para todas as mulheres, lésbicas ou não. E, à medida que se aproxima o final, parece que tudo vai terminar em pizza, como se diz no Brasil, ou seja, parece que tudo vai terminar em flores quando a personagem feminina principal, a Teresa, vendo que os termos continuam mais ou menos os mesmos do início, dá um pontapé na barraca e novamente faz uma tomada de consciência da situação da mulher. Tudo fica na mesma.

Acha que as pessoas vão perceber toda a complexidade desta narrativa?

Ouvindo o disco dá para perceber a narrativa, mas o libreto esclarece uma ou outra coisa. Eu fiz um disco para ser ouvido e quis muito que as músicas fossem belas.

Queria fazer um disco popular mas, se tem algumas músicas que ficam no ouvido, a verdade é que este disco está cheio de referências - a Chico Buarque e Vinicius de Morais, a Ibsen e a Cervantes, aos Beatles e a Platão...

Já que você fez o carinho de dizer que algumas músicas ficam no ouvido, então eu diria assim se você quer um disco só para ouvir musiquinhas bonitas compre esse, se você quer um disco que tem um segundo corpo que está escondido sob esse, compre esse que vai descobrir, pois este é um disco muito sofisticado.

Como é que foi trabalhar com o grupo de jovens da Trama?

Adorei. O Jair de Oliveira [produtor do disco] é um génio, ele é o responsável por tudo o que tem de belo no disco. E tem outros participantes, como a Susana Salles, a Luciana Mello, a Zélia Duncan, que eu trato como minha filha... É fantástico trabalhar com estes jovens. E é como fala a Hannah Arendt nós não sabemos qual será o destino do planeta porque não sabemos o que é que esses estrangeiros que nascem todo o dia vão querer fazer. Eu tenho 68 anos mas continuo cantando para um público cada vez mais jovem. A média dos compradores do meu disco, no Brasil, é de 18 anos. Talvez seja por causa da rebeldia, que é o principal produto que eu confecciono. É que sem a dose certa dessa proteína que é a rebeldia qualquer geração fenece e não vinga.

Os concertos vão ser baseados só neste disco?

Todos os concertos serão somente essa opereta. Eu não faço outra coisa que não seja um teatro-pop, porque como não tenho voz de cantor para ficar lá contemplando qualquer coisa, estou sempre lançando o anzol no cognitivo das plateias. Fica uma coisa com continuidade dramática.

É verdade que vão estar vestidos de mendigos?

Tratando a mulher mal, o homem ficou numa situação tão deplorável em relação ao amor que é um verdadeiro mendigo. Por isso, eu e os elementos masculinos da banda nos vestimos como mendigos, enquanto as mulheres estão vestidas elegantemente. Isto também tem a ver com a Diotimia de Mantinea, que foi quem ensinou a Sócrates tudo sobre o amor. Ela dizia que o amor é filho da pobreza e do recurso.

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